Cabeção de Nego

Negro, pobre e contra cotas.

with one comment

Acho extremamente bonita a posição deste professor da UERJ e a da sua filha expressas no último parágrafo deste artigo: como já falei lá no post sobre a Christina Hoff Sommers, são realmente louváveis as pessoas que conseguem defender posições não porque seriam diretamente beneficiadas por elas mas porque acreditam que por trás de suas ideias está um plano de justiça comum, de ganho para toda a sociedade.

Dito isto, estou no extremo oposto: sou negro e muito pobre mesmo, mas não acredito na justiça ou na efetividade do sistema de cotas racial e sequer do sistema de cotas social (que já apoiei com ressalvas no passado, mas hoje sou contra).

Fui estudante cotista da mesma UERJ em que o autor do artigo linkado acima leciona (embora nem tivesse precisado já que minha nota foi bem maior do que a nota de corte da ampla concorrência), hoje estudo na UFRJ (não cotista), passei ainda neste meio tempo por um curto período na UFF (não cotista).

O meu principal ponto contra as cotas é que (pelo que tenho visto na minha experiência pessoal, na absoluta falta de estudos academicamente legítimos sobre o tema, é só com ela que posso trabalhar) ela não tem beneficiado o seu alvo platônico: no campo das ideias, num mundo puramente platônico, o grupo de pessoas beneficiadas pelo sistema de cotas seriam tipicamente filhos de lavadeiras e pedreiros, moradores de bairros pobres ou favelas, gente que estudou em escolas estaduais suburbanas típicas onde faltam professores e equipamentos didáticos… é este o “cotista” que aparece nas propagandas oficiais, é este o “cotista” que é defendido nas reuniões dos DCEs, sindicatos e outros bankers típico da esquerda; e estas pessoas seriam “privilegiadas” apenas no sentido de equilibrar a disputa contra jovens bem vividos, filhos de pais com ensino superior, moradores de bairros nobres, educados em escolas de ponta com amplos recursos didáticos.

Existem dois problemas nesta conta:

1º – Nossa sociedade não é tão dividida assim, não existe uma Belíndia brasileira de fato, existem um monte de meios termos, existe sim uma Bélgica na Vieira Souto e uma Índia na margem continental da Ilha do Fundão, mas existem Colốmbias, Grécias, Portugais, Espanhas, Chiles, Venezuelas que não entram na conta quando se faz este cálculo dualista, quando se desenha o Brasil como sendo uma sociedade meramente dividida entre ricos e pobres, neste sentido eu acredito que um sistema de bonificações progressivas em que, por exemplo, um aluno com renda familiar de menos de 1 salário per capita ganhasse 5 pontos de bônus na nota final do vestibular e um aluno com renda menor que 3 salários ganhasse 2 pontos, em que um aluno que estudou em escola pública desde a primeira série ganhasse outros 5 pontos e outro que tivesse estudado em pública só no ensino médio ganhasse 2 pontos daria mais conta, ao menos no campo das ideias, destas nuances de nossa pirâmide social do que um sistema tão pão-pão,queijo-queijo, tão linguiça ou salsicha quanto o sistema de cotas atual.

2º , e mais importante: o sistema de cotas não tem facilitado o acesso de pobres à universidade, tem facilitado a vida dos espertos, dos malandros, dos que sabem usar o jeitinho brasuca para desde furar fila do bandejão até receberem restituição de tudo que pagaram de imposto de renda falsificando comprovantes de cuidados médicos e declarando o papagaio e o poodle como dependentes. A maioria dos cotistas que conheço é gente de razoavelmente a muito bem vivida, em geral filha de pais graduados, que estudaram a vida inteira em boas escolas particulares e apenas o ensino médio em escolas públicas de referência (IFRJ, FIOCRUZ, CP2, Colégio Militar, CEFET, CAp-UERJ…) e que mentiram, quase sempre omitindo as rendas dos pais, para passarem de modo mais fácil.

Os desafortunados de verdade trocaram a disputa desleal com os ricos egressos do Colégio São Bento e do Notre Dame pela disputa desleal com os no mínimo remediados e muito espertos egressos do Colégio Pedro II, do Colégio Militar, do CEFET.

Para além disso, tenho mais um monte de ressalvas sobre os programas de inclusão acadêmica, sobretudo o sistema de cotas racial e o PROUNI, como a legitimização da ideia de inferioridade intelectual dos negros, o reforço do sentimento de que com jeitinho brasileiro e lei de gerson você sempre se dá bem, o direcionamento do dinheiro público para criar um “novo” tipo de coronelismo político, a possibilidade da redução da produtividade acadêmica com a redução da exigência para ingresso…

Ficam pra próxima…


Curiosamente poucas horas depois de publicar mais este texto pra ficar perdido na websfera leio uma matéria no G1 sobre um novo “escãndalo” sobre o sistema de cotas: um monte de estudantes, a maioria meninas, a maioria loiras, foram pegas pra cristo pelo MP do Rio por terem se declarado negras no vestibular da UERJ. 

Alguns pontos:

1. é quase unânime no sistema de comentários do G1 a opinião de aconteceria menos se o sistema de cotas fosse meramente social; não creio, é tão fácil declarar apenas a si próprio ou apenas a mãe e não o pai na composição familiar (e desta forma não ultrapassar o limite de renda estipulado pelas regras do certame); e isso tem sido feito amplamente desde que os sistemas de cotas foram instituídos.

2. discusões sobre moralidade ou eticidade da prática a parte, nenhum dos jeitinhos pode ser considerado ilegal: nem mentir a renda (no caso de pós-adolescentes que não tenham renda própria, que é o público alvo dos vestibulares) nem se declarar negro não sendo. Como o reitor da UERJ disse, não há nada a se fazer quanto a alunos brancos que se declaram negros, de acordo com o estatuto racial. A questão da composição familiar é um pouquinho mais complicada, mas existe uma dificuldade prática de provar que alguém está mentindo em sua composição familiar, ao menos quando todos forem adultos. Não existe uma definição objetiva de quais circunstãncias tornam 4 adultos membros de uma mesma família, a coisa do ponto de vista legal é (e deve continuar sendo) um tanto quanto flexívele isso permite, como dito acima, que se faça os melhores arranjos (no sentido de dar um jeitinho de entrar nas cotas) possível.

Written by Daniel

março 29, 2014 às 3:27 pm

Publicado em Política, Sociedade

Uma resposta

Subscribe to comments with RSS.

  1. Olá! Obrigada pela “visita” e pelo comentário. Sou mestiça, pai branco, mãe negra. Sou e sempre fui contra cota.Minhas razões são simples: 1ª: o alvo da cota vai chegar na universidade em desvantagem, pois é sabida a deficiência do ensino público, ainda mais se comparado ao particular. 2ª: não há só negros pobres, há brancos também e 3ª: é uma clivagem ofensiva, preconceituosa, destinada a jogar uns contra outros. Qualquer pessoa com uma cor mais “temperada” que chega na universidade é olhada com desconfiança, o possível mérito dessa pessoa é posto em dúvida, no mínimo.
    A coisa certa a fazer é melhorar o ensino público e dar chances iguais para negros e brancos pobres. Que dá para fazer, dá, mas enquanto a ideologia paulofreirista for dominante, não tem como.

    sessrodrigues

    junho 12, 2014 at 1:21 am


Deixe um comentário